O amor é uma espécie de suicídio. Amar é essencialmente desejar
ser amado.
Jacques Lacan
Há
alguns anos atrás uma espécie de acaso me pôs no caminho de uma experiência que
me marcou para sempre. Vivi junto com minha mulher (a esta altura ex) uma crise
conjugal, e já não éramos um casal tão jovem... E não me diga que isso é comum. Porque é sim, mas e daí? Nosso filho, que já não é vivo, e
nossas duas filhas haviam nascido e cada um de nós já se submetera a um
tratamento psicanalítico e por conta dessa crise procuramos a ajuda de uma
psicanalista, especializada em terapia de casais – embora esse tipo de
tratamento esteja fora do âmbito da psicanálise.
Era
uma época em que a psicanálise, assim como as psicoterapias em geral, gozava de
grande credibilidade. As sessões seguiam seu curso de um modo que me faziam
crer em bons resultados. E é bom que se diga desde já, terapias de casal não
conduzem necessariamente a uma reconciliação, como fez questão de deixar claro
a terapeuta. O propósito é esclarecer, deixar claro para ambos, que a relação
conjugal é viável, ou não. Para o quê ambos deveriam se esclarecer entre si e
para cada qual sobre essa viabilidade. Ou inviabilidade.
Não
me lembro exatamente quando, mas numa certa altura a terapeuta, em momento de
picardia explícita, nos recomendou um exercício. Deveríamos usar um certo tipo
de sais de banho, um óleo de aroma forte, e deveríamos cada qual na sua vez
espalhá-lo pelo corpo nu do outro, com suavidade, massageando o outro.
Demoradamente. Buscando e descobrindo o outro em seus detalhes mínimos, em seus
vãos e desvãos, uma verdadeira redescoberta dos parceiros.
Fez,
no entanto, uma ressalva em tom de advertência.
Não deveríamos nos deixar levar e praticar sexo.
Simplesmente
não foi possível resistir a uma circunstância fortemente erotizante. Daí...
Bom, a interdição foi desrespeitada em todas as ocasiões que seguimos a
“prescrição médica”, sem exceção. E somente muitos anos mais tarde pude me
aperceber que o exercício prescrito se não fora suscitado por algum tipo de
associação ao tantrismo, poderia mesmo assim ser atribuído a uma grande
co-incidência. Desfeito o casamento adotei como regra esta prática de modo
pouco, digamos, tântrico... uma vez que os efeitos sobre ambos era mais do que
poderoso. Era de êxtase “puro”.
É
claro que a experiência foi prazerosa e resultou inicialmente numa retomada do
interesse mútuo, mas levou a uma consequência insidiosa, oculta. Na verdade, a
experiência foi praticada de modo equivocado.
Mas
qual a relevância dessa questão?
A psicanálise, como se
sabe, dá especial relevância à sexualidade e a constatação vem de afirmação
feita por Jacques Lacan, quanto à inexistência da relação sexual . Lacan é
conhecido por suas frases curtas e de efeito surpreendente. Entre outras, a
mulher não existe, o amor é dar algo que não se possui e, para aqui, não existe
relação sexual. Emprega-se a palavra amor para expressar um sentimento em relação a alguém ou a alguma coisa. Por este motivo existem inúmeras definições para a palavra amor. Aliás, existe até mesmo algo como uma escala ou classificação do amor segundo a natureza e o objeto do amor. Refiro-me aqui à escala ou classificação que segundo a natureza e objeto do amor se divide em eros – constituído no plano físico, psique – constituído no plano espiritual, ludus –que visa o prazer lúdico, storge – constituído no plano da afeição, pragma – constituído no plano pragmático, por visar à necessidade, mania – que se constitui como paixão ou mesmo obsessão, e agape – constituído no plano da solidariedade, é altruísta. Em verdade, o uso da palavra amor tornou-se de tal modo amplo, até mesmo banal, que serve ambiguamente para qualificar desde um mero apreço por algo ou alguém, como também admiração, mania, obsessão, cupidez, interesse acentuado, por algo ou alguém, e por aí vai... Eu, de minha parte, lamento que seja assim. Por sua importância e nobreza devia se limitar por lei e decreto o uso da palavra amor para falar de sentimento, restrito a pessoas. Talvez devesse se aplicar a cães, porque amam seus donos. A gatos, de que gostei por toda a vida, nunca.
Importante
é, desde logo, estabelecer que amor é um sentimento - a percepção daquilo que se sente - e que não necessariamente estabelece uma relação baseada
na reciprocidade. Em outras palavras, o sentimento amoroso não necessariamente
é mútuo. Por outro lado, o amor é um sentimento de que todo sujeito é
dependente para o seu bem-estar e a privação do objeto do amor causa-lhe no
mínimo mal-estar.
Igualmente
importante é a distinção que diz respeito à motivação, como seja, a satisfação
de um desejo tanto quanto de uma necessidade.
O
amor que se origina pelo desejo e nele se exacerba é, via de regra, voltado
para o próprio sujeito, é egocêntrico. Dificilmente este tipo de “amor” corresponde ao sentimento amoroso. É motivado pela
intenção de tão somente possuir ou ter a propriedade do objeto do “amor”, e no
caso de duas pessoas, é destituído do propósito de satisfazer por reciprocidade
o desejo ou necessidade do objeto do “amor”. Este tipo de “amor” é, de modo bem
peculiar, não essencial, pois que é motivado, também como regra, pela luxúria,
quando dirigido a uma pessoa, ou pela cobiça ou cupidez, quando dirigido a um bem
material. A rigor, este tipo de amor não deveria ser considerado
como tal.
Já o
amor que se caracteriza pela satisfação de uma necessidade afetiva como tal é
considerado essencial à vida. Este é, pelos exemplos mais comuns, o “amor” filial
e maternal tanto quanto o paternal e o fraternal. Quando movido pela volição
dirigida a alguém que se quer como companheiro ou companheira, diz-se que este
amor é romântico, no sentido
literário, porque estimula a capacidade de reagir emocionalmente frente ao
objeto de amor -
tanto no que toca o objeto do amor quanto no que por ele é tocado. Esta
natureza do amor é especialmente baseada mais do que na interação entre sujeito
e objeto, mas na busca da comunhão entre pessoas. A privação desse tipo de
amor, mais do que ao mal-estar, implica em, como estado patológico já levado ao
paroxismo, leva à depressão, à melancolia. A desesperança, mais do que a dor,
corroi a mente e acaba por instalar-se de modo arrasador. Leva à perda até da
fé de conseguir aliviar o sofrimento no amor.
A
ênfase que aqui atribuo a este evento é importante de se anotar, dado que
explica as inúmeras dissoluções de casais e variedades de comportamento.
Por que tantrismo entra nessas considerações? É uma prática que busca resolver a questão da possibilidade do amor entre duas pessoas.
Por que tantrismo entra nessas considerações? É uma prática que busca resolver a questão da possibilidade do amor entre duas pessoas.
Comecemos
então por entender, sem maior aprofundamento, o que é tantrismo, ou melhor, o
que são os tantrismos. Sim, porque
existe uma grande variedade de correntes de pensamento tântrico, de natureza
religiosa e não-religiosa, assim como linhas de pensamento tão somente
filosófico, de práticas com propósitos essencialmente psicológicos e mesmo
medicinais.
No
geral e em comum com todas estas vertentes, o tantrismo é uma prática de origem
iogue que provém de uma corrente de pensamento hinduísta a partir dos Vedas, as
escrituras sagradas do hinduísmo. Muitos são os que afirmam ter surgido por
volta do ano 500 da era cristã, mas seus preceitos seguem textos da tradição já
anotada ancestralmente – os tantras, os livros da sabedoria hinduísta, muitos
dos quais têm mais de três mil anos[i].
Muitos são os que consideram que a partir do século VI, e não antes, são
encontrados cultos tântricos nas escolas filosóficas shivaites ou shaktistas.
Há divergências: em algumas correntes do budismo atribui-se ao Buda Sakyamuni
já se manifestar no século VI antes da
era cristã sobre a prática tântrica, que persiste no budismo mahayana e no
budismo vajrayāna[ii].
Há também alegações de que o tantrismo teria origem em sociedades matriarcais
até recentemente consideradas equivocadamente primitivas, ainda no período
harapeano-dravídico, cuja cultura não era belicista[iii]
e muito menos primitiva. Resulta daí se supor a razão de a mulher, em contraste
acentuado com as demais culturas védicas, ser exaltada, reverenciada e até
mesmo divinizada. E não só pela sua natureza como mãe enternecedora como ainda
na medida em que dava vida a outros seres humanos. Estão presentes nas raízes
do culto tântrico expressões como templo da vida, templo sagrado referindo ao
útero, ao ventre materno[iv].
Daí eventualmente também a sua natureza matriarcal fundada no culto da mãe
deusa, do que parece resultar também a sua natureza sensorial a partir do
alimento primordial por intermédio do seio materno.
De
acordo com a doutrina tântrica, tanto filosófica quanto religiosa originais[v],
existe uma identidade absoluta entre o espírito e a matéria, o microcosmo e o
macrocosmo, o eu e o mundo, a alma individual e a alma universal. A alma
universal é concebida como o fundamento do todo, do Um, unidade indivisível,
transcendente e eterna que se manifesta sob uma forma andrógina, que tem em si
um princípio masculino estático e um princípio feminino dinâmico, que se
integram um ao outro, continuamente criando a vida.
Do
ponto de vista religioso, o princípio criativo masculino, o espírito, e a
natureza material -
identificados pela vertente religiosa mítica respectivamente com Shiva e Shakti
- constituem dois aspectos do Um original, simbolizados
pelo lingam ("falo"[vi])
e a ioni[vii]
("ventre maternal", "lugar"). Da união desses dois
princípios surge e ressurge continuamente o mundo e nasce e renasce
continuamente a vida. A partir da união dos dois sexos será eliminada a
polaridade dos contrários e irá levar ao original indivisível que precedeu à
criação. A superação de todo dualismo coincide com a liberação última, extática,
e é obtida mediante ritos e formas de meditação especiais.
Os
cultos de Shakti - a
força passiva, feminina - e
Shiva - a força ativa, masculina -,
conduzem ao ser supremo definitivo (Brâman) como a sublime união da força
ativa, masculina, contida no ligam – o falo – com a força passiva, feminina (Param Shiva) contida na ioni – o ventre
da mulher-mãe. Esta união é centrada no desenvolvimento e despertar da
kundalini, a "serpente" da energia ígnea, a manifestação sexual , e
portanto de natureza biológica, situada na base da espinha que ascende através
dos chakras até alcançar a união entre Shiva e Shakti. Serve a este propósito o
processo conhecido como samadhi, a prática milenar de centrar a mente em uma
única sensação ou ideia para atingir o
estado de ânimo que enseja a meditação.
Para
esse efeito, os adeptos devem se dedicar ao controle das pulsões, os impulsos
mais primários que estão relacionados aos instintos relacionados à sexualidade,
para não se deixar dominar por estes instintos. Em outras palavras, o tantrismo
é uma prática ou mesmo um culto que prega a busca do esclarecimento ou
iluminação através a união sexual, mediante o samadhi, e a esta atribuirá a
qualidade de anteceder e promover a consciência plena, indispensável para que
se atinja a iluminação.
O
tantrismo é uma das escolas de pensamento hinduísta mais antigas. Alguns
aspectos históricos demonstram sua origem mais remota no que durante muito
tempo se denominou Civilização do Vale do Indo. Não é esse, todavia, o aspecto
que gostaria de destacar imediatmente, mas, sim, o seu fundamento
histórico-religioso. A meditação tântrica, segundo algumas especulações, teria
se desenvolvido entre tribos dravídicas do sul da Índia por volta de dez ou
quinze mil anos atrás – o que talvez seja um exagero, mas não é impossível.
Tinha então a finalidade de exprimir o desejo de compreender a mente
consciente. A partir do sexto milênio antes da era de Cristo a meditação
tântrica passou por um desenvolvimento maior promovido pelo iogue Shiva,
tornando-se parte integrante do taoísmo, budismo, budismo tibetano e zen, e do
sufismo. No tantrismo original, ao contrário da absoluta maioria das correntes
espiritualistas, se vê o corpo não como um obstáculo, mas como o próprio
veículo para o conhecimento[viii],
para o desvendamento do cosmos, o que coloca o corpo senão no centro mas de
grande importância para o seu culto. Para o tantrismo todo o complexo humano é
vivo e possui consciência independente da consciência central e, por isso
mesmo, é merecedor de atenção, respeito e reconhecimento. Para tanto utiliza
mantras[ix]
e iantras - figuras geométricas como, por exemplo, mandalas que
representam as diversas formas de Shakti - além
de rituais que incluem formas de meditação de grande complexidade. De especial
importância para o tantrismo é o culto da união da mulher e do homem pelo ato
sexual. Previne-se, no entanto, que poucas são as pessoas que estarão prontas
para o tantrismo, principalmente aquelas da espécie que têm “disposição animal”
e, por conseguinte, carecem de orientação. Ou seja, a maioria de todos nós...
No
cerne do culto tântrico acham-se rituais de natureza esotérica de conotação
fortemente mágico-simbólicas ao longo do ato sexual. Após os procedimentos
preliminares os praticantes devem passar por um processo de percepção profunda e
de conscientização da “energia” de um e outro, com propósito de reciprocidade
elevada.
As
posições específicas das mãos, por exemplo, são a expressão da tensão de todo
ser sobre o divino. O ritual que consiste de tocar certas partes do corpo do
outro serve para identificá-las com o ser divino, simboliza a entrada do
influxo divino no corpo dos adeptos. O ritual se faz acompanhar da recitação de
mantras e bijas, os primeiros sendo constituídos de fórmulas polissilábicas e
os segundos de fórmulas monossilábicas. E através o ato sexual os adeptos
estarão celebrando o momento da criação, perseguindo um controle perfeito dos
sentidos e das reações corporais.
Cada
discípulo recebe de seu mentor um mantra personalizado. O mais recitado dos
mantras é aum ou oum, cuja origem considera-se ter ocorrido no período do império
harapeano[x].
De outro lado, existem inúmeros diagramas místicos, de diferentes formatos,
como as mandalas, os chamados círculos de meditação, que constituem o suporte
físico de representação simbólica do universo. Esta é a razão mesma de serem
realizadas apenas com apoio de um guru[xi]
experiente, pois se supõem eventualmente fatais no caso de serem praticadas
incorretamente – o que não chega a ser exagero místico, porquanto não são raros
os incidentes. Mais ainda que outros iogas, o tantrismo, seja hindu ou budista,
é uma prática que, como vimos, depende de um guru.
É
através o ato sexual - e
este é um importante aspecto a lembrar - que
os adeptos celebram o momento da criação. Atingindo um controle que se pretende
perfeito das forças sobre-humanas do cosmos que se manifestam por intermédio de
seus corpos, os seguidores irão permitir a união da alma individual com o ser
supremo.
Assim,
os adeptos acreditam que no ato sexual possam atingir o mais elevado de todos
os objetivos humanos: alcançar a plena iluminação, estado último de paz no qual
todos os obstáculos que obscurecem a mente foram removidos e todas as boas
qualidades, como sabedoria e compaixão, serão completamente desenvolvidas. No
budismo tântrico os métodos para atingir a paz da plena iluminação são os
caminhos do sutra e do mantra secreto, este último ainda “mais raro que os
ensinamentos dos mil Budas”, dos quais somente o quarto (Buda Gótama, o Sakyamuni),
o décimo-primeiro e o último poderão ensinar os caminhos do mantra secreto.
“Secreto” indica que esses métodos devem ser praticados em segredo. Se exibida
a prática, irá atrair muitos obstáculos e forças negativas. O que denota a
preocupação dos seguidores com perseguições.
Cabe
aqui uma observação fundamental, que pretende afastar as ilações viciadas pelo
preconceito por se precipitarem antes de conhecer propósitos. As práticas
tântricas não têm por fim a atividade sexual ou a penetração dissociada da comunhão.
O trabalho objetiva aumentar a percepção mútua acentuando a sensibilidade de
ambos e, a partir dessa, promover os níveis de comunhão onde haverá, mais do
que prazer, o êxtase. Não se trata, pois, de uma proposta tão somente sexual.
Há, sim, atividade sexual. Toda atividade que erotiza é sexual,
independentemente do objeto de erotização como bem aponta a teoria
psicanalítica. Não é esse, porém, o propósito último. Até porque na busca da
comunhão, como iremos ver, há procedimentos que tanto precedem o ato sexual,
como o sucedem, já então na busca da comunhão que permite alcançar a
consciência plena e a iluminação. O que importa é, mais do que qualquer das
práticas devocionais de natureza religiosa, é que se busca na prática tântrica
a união pelo amor para se alcançar a consciência plena e a iluminação.
Após alguns
procedimentos preliminares os praticantes devem passar por um processo de
percepção profunda e de conscientização da “energia” de um e outro, com
propósito de reciprocidade elevada. Nesse momento, é considerado fundamental
permanecer em silêncio, integrando o forte impacto que a experiência oferece.
Nestas práticas, o propósito é o envolvimento mútuo de um casal ou de parceiros
que se propõem a comungarem do amor.
Nessa
busca da comunhão amorosa é preciso, antes e acima de tudo, estarem os
parceiros convencidos que o intento é comum a ambos e que isso ocorrerá através
a comunhão como veículo para o conhecimento de si mesmos, do outro, da própria
razão de sua união e da natureza e razão das coisas do mundo.
Embora
pareça uma abstração, é nessa clareza do intento de um e de outro que reside o
cerne do termo relação.
Comecemos
por construir o significado do que seja relação. Como seja, a noção que se
constroi a partir da constatação de que só existe relação entre pessoas ou
grupos de pessoas, objetos ou conjunto de objetos, quando existe uma ligação ou
correspondência entre essas pessoas ou grupos de pessoas, assim como entre
objetos ou conjunto de objetos. É, portanto, um ato ou processo intelectual que
estabelece ou permite estabelecer uma ligação, referência ou correspondência
entre duas ou mais coisas. No caso, uma relação interpessoal irá requerer
co-respondência, co-participação.
Para
bem entender, relação e sexo são duas disposições humanas e, de fato, o
enunciado propõe que o intercurso sexual de duas pessoas, em si e por si só, afasta
ao invés de aproximar dois seres humanos. O vazio a que se refere Badiou é a
fonte de repetidas insatisfações seguidas de frustração a partir do momento em
que são percebidas ou no subconsciente, ou no inconsciente. Quando sobrevém a
percepção consciente desse vazio a dor é inevitável.
Entenda-se:
no intercurso cada qual é, de modo bastante generalizado, movido pela busca do
seu próprio prazer, pelo êxtase de-si
e para-si, em que o outro irá
satisfazê-lo apenas como mero objeto - para
o próprio e único sujeito, que é o seu próprio eu – ou os seus respectivos eus.
A intenção é o gozo próprio, que quando muito será um simulacro narcísico, uma forma
de auto-certificação de sua própria habilidade e poder – se importando pouco
com o gozo com o outro. O simulacro reside no empenho em proporcionar prazer
sexual no outro, não como prova de amor, mas de esforço performático, de
exibição de poder feminino ou masculino, de feminilidade ou de virilidade. E in fine puro narcisismo.
Não é
fácil perceber e aperceber-se disso. Por vezes pode levar muito tempo e até
mesmo o período de toda uma vida. Há casais que constroem vias paralelas para
dissimular para si mesmos e para o outro o vazio a que se refere Badiou. Ora
com manias - como podem ser pela via de uma busca obsessiva de
conforto espiritual em práticas religiosas, elas mesmas obsediantes-, ora com adicções – que tanto podem ser pela via do alcoolismo,
dos antidepressivos e até mesmo das drogas pesadas. Em qualquer desses casos a
inquietação, a ansiedade, a angústia, os impulsos de auto-mortificação ou, até
mesmo, de conquistas “amorosas”, todos refletem o vazio do amor faltante.
É
raro nos lembrarmos que existem terapêuticas para essa falta, mas é preciso,
primeiramente, nos dar conta, nos apercebermos da falta, da falha no
“relacionamento”. Mais ainda, a busca de compreensão das razões desse vazio e
de uma solução supletiva requer empenho e, sobretudo, se a busca é partilhada
pelo casal, feita de comum acordo... É imprescindível que haja consonância,
mais do que mera concordância, entre os parceiros. A falta desse acordo e
consonância irá invalidar todo esforço na busca.
Tive
experiência pessoal. Fiz terapia de casal.
E, como já disse, a experiência não foi boa no final das contas. Deu lugar com o tempo ao tal vazio a que se refere Alain Badiou.
Não
me atrevo a atribuir erro à psicoterapeuta. É fato, porém, que faltou a determinação de buscar a comunhão
já que buscamos apenas um entendimento das nossas possibilidades como casal. Um
“ajustamento”.
Creio,
mesmo, que todo ser humano tem a capacidade de desenvolver esse efeito mágico
que é o amor por qualquer outro, independentemente de beleza interior ou
exterior, credo religioso, cor, ascendência étnica, ou até mesmo sexo, idade, e
o que mais seja. É evidente que valores pessoais e paradigmas sociais e
culturais são determinantes do interesse de uma pessoa por outra. O interesse
comum aproxima as pessoas, claro, mas não são assim tão raras as personalidades
claramente contrastantes que se atraem, embora esses contrastes com o tempo e a
convivência possam exacerbar-se e incitar desavenças, desagrado, intolerâncias.
Como
resolver diferenças? No meu caso não foi pela via do sexo puro e simples. Minha passagem acadêmica pelo campo da História ensinou-me que não existe essa coisa de como seria se não fosse. Mas, ainda assim, tenho
a firme convicção que se tivéssemos nós, como casal, estabelecido o
firme propósito de superar nossas diferenças, buscar harmonia pela comunhão no
amor, possivelmente teríamos chegado lá, sem ter exacerbado nossas diferenças
com a busca da relação no sexo apenas. Faltou-nos buscar nossa correspondência
no preenchimento do vazio, pela suplência no amor.
E
quantas são as pessoas que se apercebem disso, se dão conta que não existe
verdadeiramente a relação sexual, a
relação interpessoal no sexo entre duas pessoas?
Há
casais que dão testemunho de que suas vidas conjugais contam com o que
consideram uma vida sexual satisfatória, por vezes até intensa. E ainda assim
sofrem de uma insatisfação mal definida, com interesses ocasionais por outras
pessoas como eventuais parceiros no sexo. Episodicamente não atingem o orgasmo,
mas não se detêm sobre esses episódios por considerá-los “coisas que
acontecem”. Sobretudo homens se dão por
satisfeitos se ejaculam, ainda que de modo fugaz. Mas e o verdadeiro gozo no
paroxismo do orgasmo?
Diga-se,
por ser oportuno também, que há práticas que preceituam atingir o que se
considera êxtase orgástico sem ejaculação para não se perder “a energia” que motiva
e mantém a busca do orgasmo seguidamente, o orgasmo múltiplo. A este propósito
se propõe a chamada reflexologia sexual, baseada nas práticas tântricas sem
seguir tão de perto os fundamentos do tantrismo. E é importante compreender que
a reflexologia sexual propõe práticas para que se alcance o orgasmo, e não o
êxtase orgástico, porque refere-se apenas ao orgasmo sem apontar a verdadeira
intenção que fundamenta as práticas tântricas.
A nós
irá interessar mais especialmente a relação entre duas pessoas que formem um
casal e têm inicialmente um único propósito
comum, a saber, alcançar a satisfação do desejo mediante o prazer transcendente
no intercurso sexual, o que equivale a um êxtase orgástico. Inicialmente, sim,
porque a satisfação do desejo sexual não é bastante, mesmo que se busque
assiduamente, até porque é preciso se dar a conhecer e conhecer o outro como
realmente é. E esta busca é incessante, persistente e... Inatingível porque não
deve cessar – ou, como se diz, “para todo o sempre para o melhor e o pior, na
riqueza e na pobreza, na doença e na saúde, até que a morte os separe”. Há uma
razão para esse intento, na medida em que todo indivíduo constitui um universo
que a cada dia se modifica e, portanto, se renova sobretudo pelo perceber e pensar
as experiências do cotidiano.
É,
todavia, o conhecimento de si mesmo que permite desencadear o propósito de percepção e conhecimento do
outro. É este, evidentemente, o primeiro dos passos que permitem reconhecer o
outro, o que requer uma profunda introspecção, seguida de um crescente
reconhecimento de suas próprias naturezas o que permitirá a cada qual
perscrutar a natureza do outro. Não é um processo fácil e muito menos rápido. Menos
ainda deve se supor que esse auto-conhecimento é obtido por-si e em-si,
admitindo-se a necessidade de ajuda de um mentor com habilidades especiais. Ainda assim deve ser perseguido com
persistência, o que se consegue com detida reflexão. Ou, em outras palavras,
com detida meditação.
O
êxtase orgástico é a porta que se abre para a comunhão dos parceiros no ato
sexual. A ejaculação é, pois, para o homem uma interrupção, o próprio corte e
frustração dessa busca porque suspende essa busca – aí, sim – porque resulta
como impulso meramente instintivo, ou como querem os pensadores do tantrismo,
como impulso animal. Sobretudo porque em
especial a mulher via de regra sempre busca a comunhão, enquanto o homem busca
satisfazer-se no sexo. É possível
essa comunhão? Podem, afinal, um homem e uma mulher se encontrar, se fundir,
tornarem-se uno, atingir a verdadeira união?
A prática
tântrica para o amor
No mundo ocidental há um número considerável de adeptos do tantrismo e da
reflexologia sexual, esta última de inspiração taoísta. O apelo do orgasmo
tântrico assim como da realização de orgasmos múltiplos naturalmente atraem
adeptos, muitos dos quais são inspirados de modo equivocado. Uns entendem que o
tantrismo possui o condão de desenvolver a espiritualidade em si, enquanto
outros buscam desenvolver técnicas para obter sensações mais intensas no ato
sexual. É bem verdade que ambos os casos resultam em sucesso relativo quanto
aos propósitos imediatos de um e de outro. Como já observei anteriormente ao
citar o psicanalista Jacques Lacan e as considerações do filósofo Alain Badiou,
não há essa coisa chamada relação sexual
e o ato sexual termina inevitavelmente num doloroso vazio, resta àqueles que
não se entregam pura e simplesmente a tal evidência e empenham-se em superar
dificuldades em si mesmo e no outro.
Vale a pena. O orgasmo tântrico é o êxtase gozoso na fusão, na completude
e na complementaridade do um e do outro, unidos, um estado de prazer extremo,
prolongado. Com amor verdadeiro. E muitos são os críticos que ora condenam o
tantrismo por preconceito, ora o condenam por desconhecimento ou deliberada
negação de seus propósitos, por recusa em explorar as possibilidades vivenciais
que se possa alcançar.
Cabe, porém, a esta altura fazer algumas observações, ou mesmo
advertências. Primeiramente, já me referi ao fato de que o tantrismo em
qualquer de suas formas e vertentes do pensamento é uma prática para um casal.
Necessariamente envolve a mediação do sexo entre os parceiros. Para atender aos
seus fundamentos e preceitos mais primordiais é preciso lembrar que, como já
mencionei anteriormente “A
partir da união dos dois sexos será eliminada a polaridade dos contrários e irá
levar ao original indivisível que precedeu à criação. A superação de todo
dualismo coincide com a liberação última, extática, e é obtida mediante ritos e
formas de meditação especiais.” Do ponto de vista
religioso é “através o ato sexual (...) que
os adeptos celebram o momento da criação. Atingindo um controle que se pretende
perfeito das forças sobre-humanas do cosmos que se manifestam por intermédio de
seus corpos, os seguidores irão permitir a união da alma individual com o ser
supremo.”
Em segundo
lugar, deve ser considerado pelos iniciantes e iniciados recentes que devido à
poderosa erotização que resulta de sua prática os exercícios preliminares da
meditação tântrica promovem um forte envolvimento entre os parceiros de
exercícios. Por este motivo é recomendada cautela na escolha de parceiro ou
parceira sob dois aspectos principais. De um lado, o parceiro ou parceira tem
de estar imbuído do espírito e proposta no tocante a, para uns,
comunhão no amor. Para outros, movidos pela religiosidade, firmemente aplicados
e perseverantes na busca da comunhão no amor e em atingir a compreensão plena[xii].
A prática dos exercícios tântricos tem, sobretudo por estes dois motivos,
que ser o caminho para o enriquecimento de uma relação amorosa, a qualquer
tempo. A mera sedução não basta. A busca do orgasmo múltiplo leva a ilações no
campo da afeição que podem ser enganosas e a interpretações distorcidas na
psique quando não se tem o propósito de amar e ser amado. Como também
já me referi “o
sentimento amoroso não necessariamente é mútuo. (...), o amor é um sentimento
de que todo sujeito é dependente para o seu bem-estar e a privação do objeto do
amor causa-lhe no mínimo mal-estar.” A sua privação, mais do que, como estado patológico
já levado ao paroxismo, resulta em mal-estar, mas pode também implicar em depressão, em melancolia. A desesperança, mais do que a dor, corroi a mente e acaba por
instalar-se de modo devastador. Leva à perda até da fé de conseguir aliviar o
sofrimento no amor.
Passemos
ao que interessa.
O tantrismo possui quatro preceitos fundamentais e apresenta três
estágios ou fórmulas que preparam o praticante para atingir este orgasmo
poderoso e extasiante, de extremo arrebatamento.
O aprendizado da prática demanda um tempo e dedicação consideráveis. Não
é de se esperar resultados em prazo curto, como em qualquer das práticas de
quaisquer exercícios preliminares à meditação sistematizada, estruturada sobre
os fundamentos de uma atenção para as percepções objetivas a partir dos
sentidos, assim como subjetivas a partir de sentimentos e emoções revividas.
Serão necessários vários dias para apreender os métodos, fundamentos e
concepções. Serão necessários vários meses para atingir resultados modestos ao
praticar alguns dos exercícios. E muitos serão os meses, e mesmo anos, para se
atingir níveis mínimos de interação e conhecimento mútuo – para além do
conhecimento reunido no convívio cotidiano, corriqueiro, por mais profundo e
revelador que este convívio possa ser.
A prática requer um posicionamento do corpo de que não deve se afastar.
O primeiro preceito fundamental reside na respiração calma e profunda, ao
mesmo tempo que a mente está atenta para as percepções corporais. Requer
empenho no controle da atenção, sempre buscando vencer a divagação, sempre que
se perder retornando à atenção da respiração simultaneamente à percepção das
sensações no corpo.
O segundo preceito fundamental é a observância do estado de relaxamento,
pela observação detida do estado de relaxamento dos ombros, do pescoço, dos
braços e mãos, das pernas e dos pés. Esta percepção se detém sobre a sensação
de peso dos membros e suas partes, assim como de cabeça, pescoço e tronco
eretos sem contração de quaisquer músculos,
sobretudo das costas e dos ombros. Não há outra maneira de se evitar dores
crescentes e até insuportáveis.
O terceiro preceito é não ceder ao impulso orgástico, sobretudo no caso
dos homens – não ceder à ejaculação. E para esse fim observar as três formas
básicas de preparo mental e físico, que serão adiante enumeradas.
O quarto preceito é manter-se mentalmente no momento presente e
inteiramente voltado para esta circunstância especial que é a busca da fusão do
casal. É fundamental não se afastar da percepção das sensações. São elas que cumprem em parte o papel de trazê-lo para o momento, a circunstância e o lugar
presentes. Cumprem o papel de mantê-lo afastado das divagações por pensamentos
que rompem a ligação com o presente – o aqui e agora. É claro que não há como
impedir por longo tempo que fantasmas sobrevenham sob a forma de lembranças e da
evocação de anseios. O importante é não se deixar perturbar por fantasmas, não permitem que eles se instalem por mais do que uma fração mínima de tempo.
Procure tirar partido de um poderoso componente que tem como prevalecer. Este componente
irá ajudar na proteção contra estes adversários do aqui e agora: é o outro, o próprio objeto direto de seu empenho, o objeto do seu amor. Sem
angustiar-se tire todo o proveito que puder dos exercícios próprios da prática
tântrica.
Passemos, pois, a eles, os exercícios preparatórios da busca de uma
comunhão que se provará intensa. E prazerosa.
É chegado, todavia, o momento de preparar-se para receber e perceber o
parceiro ou a parceira. Neste particular é também fundamental se dispondo e
predispondo à percepção do eu do outro,
acolhendo-o e a ele se revelando com atitudes, posturas, gestos, palavras e
sons. A atitude é de acolher o parceiro ou a parceira se entregando ou se
abandonando ao outro, deixando-se tomar de ternura, profunda e intensa. É
preciso, para tanto, voltar a sua atenção para as sensações que resultarão dos
toques, aromas, sabores e sons que lhe chegam do outro, assim como da visão na
troca do olhar entre si.
Os corpos têm de se tocar e para isso os parceiros devem se por de frente
um para o outro. Os corpos devem se tocar de tal modo que seus membros, seus
torsos e seus genitais se toquem, mantendo-se sempre atentos aos preceitos de
respiração atenta, relaxamento profundo, de contenção de impulsos e de
mentalização no momento e circunstância presentes.
O encontro dos corpos requer que se abracem, e sustentem demoradamente
este abraço, e que agucem suas percepções sensoriais. Pela pele irá se dar a
percepção dos corpos que tem de ser aguçada na mente. É de boa prática fechar
momentaneamente os olhos para que essa percepção seja aprofundada. O olhar, por
sua vez, demorado, que busca transmitir em toda a sua intensidade a ternura de
que se deixa tomar, permitirá captar grande parte da essência do outro. O beijo
é a forma de se saborear à boca e ao mesmo tempo aspirar pelas narinas o aroma
do parceiro e da parceira. Palavras devem ser sussurradas e sons murmurados no
ouvido de um para o outro. Instala-se assim, com esses procedimentos, a
atmosfera necessária à percepção do outro ou outra.
É chegado, pois, o momento de dar início à troca de carícias que, na
prática devocional, considera-se troca de energias entre as almas dos
parceiros.
Há três formas de gozo contido que devem ser consideradas etapas
preparatórias do orgasmo tântrico que se manifesta como êxtase amoroso. As
etapas são consecutivas e predispõem os parceiros para a fusão gozosa, a
sexualidade tântrica em sua totalidade. Em qualquer dessas etapas o controle é
de difícil sustentação, sobretudo na terceira das etapas. Não é demais insistir
de que a concentração perseverante no momento presente e na circunstância da
prática é por demais importante, crucial. A percepção de todas as sensações tem
de ser direta e imediata, o controle da mente sem divagações é condição de que
não se pode abrir mão.
A primeira dessas etapas é anterior a este momento: refiro-me à
masturbação solitária contida – o que significa dizer que ao se dedicar à
masturbação não deve se ceder ao orgasmo. Esta etapa, constituída de inúmeros
exercícios, requer concentração no propósito firme de não ceder ao instinto, ao
impulso natural, mas contrário à busca do verdadeiro êxtase. No amor.
A segunda etapa consiste de masturbação mútua que não se limita aos
órgãos genitais, mas a todo o corpo. Em parte essa etapa é mais propícia à
concentração sobre a natureza íntima do outro a partir do encontro de seus
corpos e pela troca de carícias revestidas da mais profunda ternura – é de se
evitar movimentos bruscos, quaisquer gestos ou atitudes que possam ser
considerados intensos, apaixonados, palavras e sons que denotem arrebatamento.
Finalmente a terceira etapa, a mais difícil, a que exige maior
concentração e absoluta consciência do propósito buscado, de fusão no amor.
Esta é a etapa da penetração genital. Em hipótese alguma deve-se passar da
penetração ao movimento dos genitais. É de boa prática se manter imóvel
inicialmente. É importante dedicar o máximo de tempo possível a essa etapa que
é, na verdade, de conhecimento, ou re-conhecimento, profundo do outro.
Percebe-se,
enfim, claramente. A fusão tântrica não se confunde com o simples ato sexual de
seguidores, nem ocorrerá necessariamente no decorrer do ato sexual de
seguidores. Trata-se na realidade de um estado superior cujo acesso não é dado
a todo ser humano, mas apenas àqueles iniciados que logram atender a certas
condições, que são adquirir um conhecimento real de seu próprio corpo,
controlar as suas reações primárias, determinadas pelos impulsos inerentes à
prática do sexo, e buscar a comunicação por meio dos sentidos – o tato, a
visão, o olfato, o paladar e a fala e audição – pois importa saber, mais do que
tocar, acariciar com ternura considerando que o tato transmite emoção e
energia, aprender a olhar detidamente o outro. O olhar é o mensageiro da
energia de cada qual, assim como a aspirar, de olhos fechados ou não, o aroma
do parceiro, o cheiro de seus fluidos que provêm de suas energias, assim como a
saber o parceiro ou parceira pelos lábios, pela língua, pelo beijo conhecer o
sabor do outro. Por fim, não menos importante, sussurrar palavras de carinho
amoroso e ouvir atentamente os sussurros do outro por ser esta a manifestação
do íntimo pela fala.
A
energia dos olhos é de grande importância no tantrismo. O olhar não apenas é
uma mensagem cheia de energia, como também promove a intimidade. A maioria das
pessoas sequer é capaz de sustentá-lo sem desviar o olhar e baixar a cabeça. De
acordo com o fundamento tântrico lidar com o olhar é como criar um veículo para
a energia e aprender a usá-lo e não bloqueá-lo. Para isso, o tantrismo propõe
que o praticante se deixe olhar e observar pelo seu parceiro, assim como olhar
para o outro, sem vergonha ou pudor, até o mais íntimo do seu ser. Não se trata
de esconder, mas abrir-se para o outro, ou seja, desbloquear o caminho para o
seu interior.
Cabe
voltar a atenção para a significação do abraço. Este, juntamente com o beijo,
constitui uma das mais eloquentes formas de afeição, apreço, ternura e anseio
pela comunhão com o outro. No entanto, o abraço tal qual o olhar é um ato que
via de regra se faz de modo apressado - às
vezes até substituído pelo afago rápido, quase o tal “tapinha nas costas”. A
pressa, no caso, é a manifestação do receio à revelação do ser em si e à intimidade. O abraço é, no entanto, também veículo para a troca “de energia”
contida no afeto, assim como é toda uma forma de expressão de apreço e carinho.
Obtêm-se,
assim, a comunicação e a conexão entre parceiros ao aprofundar a intimidade,
aumenta-se a expressão da afetividade. Abrem-se novos caminhos em direção ao
êxtase, à cura, à celebração da vida e à alegria. Melhora a capacidade de
resposta afetiva do casal, aumentando a intimidade.
Algumas
considerações em benefício do amor
Uma prática desejável nesse processo de busca da comunhão é denominada metta
pelos orientais. É uma prática que busca a solidariedade e a tolerância
com os seres humanos em geral. Solidariedade e tolerância são sentimentos que
se instalam , como veremos, na busca da compreensão e conhecimento do outro, embora
tenha início no processo do perdão a partir de si próprio, em seguida
estendendo-se ao outro e aos outros. É necessário, todavia, destacar que o
metta bhavana, a meditação para o metta, requer adquirir uma consciência do
significado do perdão. Este não implica isenção de culpa, anistia ou algo que
se lhes equivalha. Essencialmente metta é uma atitude altruísta de amor e
solidariedade distinta da mera amabilidade com base em interesse próprio.
Através de metta o indivíduo se recusa a ser ofensivo e renuncia à amargura, ao
ressentimento e às animosidades de qualquer natureza, implicando-se no
desenvolvimento de benevolência, na busca do bem-estar e felicidade dos outros.
Metta é na verdade um sentimento de solidariedade e tolerância universal,
altruísta e abrangente. Designa o impulso mental da compaixão, que visa ao
perdão, à tolerância, à compaixão que pressupõe incondicionalidade, sem
ressalvas, e que começa com o impulso para perdoar-se. A partir do perdão pelas
suas próprias imperfeições um indivíduo irá voltar-se para as outras pessoas,
num processo de compreensão gradual segundo a intensidade do relacionamento que
se tem com as outras pessoas. Assim, em um segundo estágio o perdão irá se
estender àqueles mais próximos – pais, irmãs e irmãos, esposas e esposos, assim
com parentes e aparentados próximos. Em seguida, amigas e amigos, parentes não
tão próximos, mas que por este ou aquele motivo contam com a nossa afeição – e,
portanto, mais percebidos como merecedores de nosso perdão. Em outro estágio o
perdão é conferido a um círculo de relações ainda imediato como o dos vizinhos
e companheiros de trabalho, escola, igreja, clube esportivo, pelada, enfim, não
propriamente amigos e amigas, mas ainda assim pessoas de que gostamos ou
podemos gostar. E essa graduação vai se voltando para pessoas com quem temos
relações cada vez mais distantes, até, no limite, voltar-se para aquelas
pessoas de quem não gostamos, inclusive aquelas de quem nos ressentimos e
devotamos até mesmo inimizade.
A prática em si se desenvolve por meio de uma sucessão de votos de
perdão. Bem entendido, voto como desejo sincero, ou vontade intensa, como ato
volitivo, de intenção – parte do que se denomina carma.
Neste ponto, permito-me apontar e analisar alguns aspectos que resultam
dessa proposição como estágio que precede o intento amoroso. Na medida em que,
claro, busca-se a comunhão amorosa.
O primeiro desses aspectos é a natureza de um voto, como ato volitivo, de
intenção , como desejo sincero, como compromisso ou promessa solene, de
natureza íntima, seja religiosa ou não, seja afetiva ou não. Sob esse aspecto,
a intenção ou compromisso sincero, consequente, não será um ato volitivo não
definido pura e simplesmente. Depende de uma firme convicção. Desenvolver uma
tal convicção não há de ser apenas uma volição sem fundamento. Claro, pode-se
perdoar e dedicar compaixão a alguém – mas como fazer isso sem compreender a
real natureza do perdão e da compaixão? Sem ter a compreensão dos aspectos a
serem objetivamente considerados em relação a um ser seu semelhante? Afinal de
contas, perdoar quem, o quê e por quê?
Ao identificar o sujeito e objeto do perdão, estaremos identificando
alguém e as razões do perdão e da compaixão, certo? Pois bem.
Ao avaliarmos a natureza de uma pessoa veremos imediatamente as
características pessoais dessa pessoa que são determinantes, circunstâncias e
fatos dessa relação interpessoal, entre ela e eu. Os efeitos positivos e negativos
devem ser considerados. Por que? Ora, porque sem ter consciência desses efeitos
não há como qualificar a natureza de uma relação interpessoal – e menos ainda a
natureza e o propósito desse perdão, compaixão, amor incondicional. E não há
como objetivar, isto é, não há como definir a ação de perdoar e ter compaixão
de modo transitivo, de modo que se transmite do eu agente para o objeto a
pessoa. Ou seja, perdoar quem, o quê e por quê.
Em segundo lugar, e não menos importante, temos de tornar presentes na lembrança
fatos e circunstâncias que motivam sentimentos e emoções... negativos dessa
pessoa em mim – pois afinal de contas não queremos perdoar? O que nos levará
inevitavelmente a evocar ressentimentos, raivas, desprezo, e outros que tais.
Por que? Bem, para objetivar nosso propósito de perdão e compaixão há de ser
pelo que é ruim, e não pelo que é bom, certo?
E é este o estágio em que voltamos a nossa atenção para o outro e nos
perguntamos qual a verdadeira razão dos nossos ressentimentos e raivas e desprezo
e temores. É este o estágio em que devemos nos perguntar se, ao menos em parte,
a verdadeira razão não estará no fato de sermos afetados por termos feito ou
sermos capazes de cometer os mesmos atos com as mesmas naturezas que nos causam
ressentimentos e raivas e desprezo. É o primeiro movimento mental que nos leva
à humildade de reconhecer em nós defeitos, defeitos com que não estamos
habituados a avaliar, simplesmente porque vemos e evocamos mais facilmente os
ressentimentos e as raivas e o desprezo e a repulsa que nos são causados, e
muito raramente nos nossos atos que possam causar e causam esses mesmos
sentimentos nos outros. Neste ponto, sim, somos capazes de perdoar e devotar
compaixão, realmente, a um outro.
Objetivar o nosso perdão e a nossa compaixão é impulso eminentemente
subjetivo, que compulsa nossos sentimentos a partir dos sentimentos alheios –
de que podemos apenas e tão apenas supor –, nossas emoções e reações a partir
das emoções e reações que somos capazes de infligir aos outros.
Neste estágio, também, damos início a um processo de auto-conhecimento. Assunto este que por ora não cabe alongar.
Não há de ser difícil perceber em nós mesmos que decisões impensadas, via
de regra levam a ações mal-conduzidas. Ou para ser mais explícito, ora vão na
direção errada e cometemos desatinos, ora nos levam a hesitar e não avançar, e
daí a decisão não resulta em ação. A questão aqui é por que? Somos, sim, os únicos animais irracionais. As demais espécies seguem seus impulsos naturais enquanto os humanos não são capazes de seguir o seu dom, a razão, em benefício de seu próprio benefício, não!
Desde Freud, como se sabe, a psicanálise dá especial relevância à
sexualidade e a eventual constatação, que vem de afirmação feita por Jacques
Lacan, quanto à inexistência da relação sexual, particularmente relevante para os
nossos fins. A expressãode Jacques Lacan que nos interessa é "Il n'y pas de rapport sexuel chez l'être
parlant" – (Não existe relação sexual entre seres que falam)”. E antes
que nos precipitemos em ilações cabe acrescentar que Jacques Lacan afirma que
somente no amor o sujeito se empenha para aproximar-se de "ser o
outro." É no amor que o sujeito vai para além de si mesmo, para além do
narcisismo. No sexo o sujeito está no final das contas em uma relação tão apenas
consigo mesmo com a mediação do outro. Como bem o diz Alain Badiou, em seu
artigo “Elogio do amor”, “(...) afinal,
que o sexo, por mais magnífico que seja, termina em uma espécie de vácuo. É exatamente por isso que está sob a lei da
repetição: é necessário recomeçar uma e mais outra vez.”
É isto. É o encontro no amor: você vai abordar o outro, para fazê-lo
existir em você e com você, tal como ele é, como você é.
O tantrismo, como se vê, parece que faz todo sentido...
[i] Em
verdade, sítios arqueológicos situados no vale do Indo datados de aproximadamente
3.000 anos antes de Cristo apresentam indícios que à época atestavam já então
existir culto à mãe universal a que se referem os tantras mediante símbolos
idênticos e, portanto, anteriores aos encontrados nos Vedas.
[ii]
Por este motivo também denominado budismo tântrico, praticado principalmente no
Tibé, no Butão e na Mongólia.
[iii]
Possivelmente por isso mesmo submetida pelos arianos, que os escravizaram e
lhes impuseram a condição de intocáveis por serem “impuros”.
[iv]
Consta em alguns ensaios e anotações que a associação de yoni e lingam aos
órgãos sexuais feminino e masculino só surgirá no século XIX por conta de
estudiosos europeus.
[v] Em
termos filosóficos, os pensamentos Nyaya-Vaishesika, Samkhya-Yoga e
Mimamsa-Vedanta, são os de maior destaque, enquanto no âmbito religioso
distinguem-se a tradição astika (védica) antiga dos pensamentos Vaishesika e
Vedanta, assim como da tradição nastika (não-védica), do pensamento Yoga, com
ligações posteriormente acentuadas com o budismo, o taoísmo, o confucionismo e
outros que contestaram o pensamento veda e os seus rigores. Cabe apontar que
diferentemente da filosofia ocidental, os pensadores indianos consideravam a
filosofia como uma necessidade prática que precisava ser cultivada a fim de
compreender o significado maior da vida e a melhor maneira de viver. Como regra,
os escritores indianos costumavam explicar no início de seus escritos
filosóficos como estes iriam servir aos propósitos humanos (puruṣārtha).
[vi] O
linga (ou lingam) corresponde ao falo como fonte transcendental de tudo que existe.
O linga unido ao iôni representa a não-dualidade da realidade contida na
natureza de um e outro em sua potencialidade transcendental. The linga stone represents Shiva, and is
usually placed in the yoni.
[vii]
Iôni é o poder de criação da\natureza e representa a deusa Shakti. Iôni (ou
yoni) é uma palavra sânscrita que significa "fonte de vida",
"templo sagrado", "passagem divina", "lugar de
nascimento". É considerado igualmente um símbolo de Shakti e de outras
deusas de natureza similar nas religiões sobretudo hinduístas.
[viii]
Considere-se que as práticas preliminares à meditação mais difundidas
preconizam que a atenção se volte para a respiração e para as sensações no
corpo, o que virtualmente implica dizer que os obstáculos não estão no corpo e
sim na mente.
[ix]
Segundo uma noção peculiar ao pensamento tantra mantra significaria “proteção
da mente”, uma vez que impede o assédio de pensamentos alheios ao propósito de
focalizar a mente em uma única sensação ou ideia através da meditação.
[x] Conhecido
também como Civilização do Vale do Indo. que floresceu entre 2500 e 1900 a.C..
[xi]
Mentor ou professor que possui grande entendimento da alguma linha filosófica no
hinduísmo, budismo e sikhismo.
[xii]
Evito a expressão iluminação deliberadamente. A palavra está, de um lado,
carregada de significação alheia à cultura ocidental e, de outro, da margem a
inumeráveis equívocos e ambiguidades por força de estereotipação.